Por que motivo algumas pessoas gostam tanto de piripiri e de outros picantes? Será Sadomasoquismo? Os não iniciados surpreendem-se e acham que os amantes de malagueta estragam a comida. Estes últimos, contudo, respondem que as pimentinhas realçam o sabor dos alimentos e transformam a refeição num momento de grande prazer. Será que já não notam nada, que têm o gosto embotado? — perguntam os primeiros.
Numa coisa os amantes da comida picante têm razão: quem se habitua continua a distinguir os diversos paladares e ganha alguma resistência aos efeitos mais penosos da malagueta. Mas é na dor provocada pelo picante que está grande parte do prazer. Surpreendente? Nem por isso, pois a dor pode estar associada à fruição. É precisamente isso que o picante consegue, quando usado em quantidade apreciável.
Perante qualquer dor, o nosso organismo liberta substâncias destinadas a entorpecer as reacções mais penosas do cérebro: as chamadas endorfinas (o nome deriva da contracção de «endógena» e «morfina»). Trata-se de substâncias descobertas nos anos 70, depois de investigações sobre a actuação da morfina em receptores específicos do cérebro.
O termo não se encontra no Dicionário da Academia (tal como muitos outros), mas o brasileiro Aurélio vem em nosso auxílio, esclarecendo que se trata de substâncias «que ocorrem no cérebro, na hipófise e outros tecidos de vertebrados, capazes de produzir acção antálgica [analgésica] prolongada, e cujos efeitos se assemelham aos da morfina».
O picante causa alguma dor, uma dor reduzida, mas capaz de fazer o cérebro libertar endorfinas que a combatem e nos dão uma sensação de prazer. O picante é quase um sedativo, mas um sedativo benigno.
Em doses normais, as pimentinhas não provocam efeitos perversos no organismo e, além do prazer que provocam pela libertação de endorfinas, têm efeitos tónicos e anti-sépticos, estimulam os sistemas circulatório e digestivo e aumentam a transpiração. São pois uma droga natural de efeitos recomendáveis. De onde vêm estas plantas milagrosas?
Ao contrário do que muitas vezes se pensa, os picantes não têm nada a ver com as especiarias tradicionais, nem mesmo com a pimenta vulgar «piper nigrum», que pode ser ligeiramente agressiva, mas não é picante. Esta é originária da Índia e o que se usa é o fruto, que consiste em pequenas esferas com uns milímetros de diâmetro. Tanto a pimenta vermelha, como a negra e a branca resultam da mesma planta — a vermelha consiste no fruto colhido fresco; a negra é o fruto seco; e a branca é a semente despojada da casca. Era uma especiaria conhecida na Europa muito antes da viagem de Vasco da Gama. Os portugueses trouxeram-na da Índia e espalharam-na pelo mundo. Passou a ser cultivada em África e no Brasil e a ter lugar à mesa de todos, e não apenas dos mais abastados.
Os picantes, por seu turno, são confeccionados a partir de uma outra planta «Capsicum frutescens», que recebe o nome vulgar de gindungo, pimentinha, malagueta, pili-pili (em África) ou piripiri. O que se usa é o fruto inteiro, que tem dimensões e aspectos diferenciados conforme os climas, condições de cultivo e tratamento. As substâncias activas picantes que contém não existem nas pimentas vulgares nem em nenhuma outra especiaria.
Pouca gente o sabe, mas foram os portugueses que introduziram o picante no Velho Mundo. Foram buscar a planta à América do Sul, à floresta amazónica, de onde é originária, e levaram-na para África, onde se desenvolveu bem. Transportaram-na depois para a Ásia, onde ela foi muito apreciada.
As pimentinhas foram introduzidas na Índia pelos portugueses. Os indianos não usavam picante antes de nós lho levarmos. Conheciam a pimenta vulgar, o cravinho e muitas outras especiarias, mas desconheciam esse sedativo alimentar.
Nuno Crato